7,7 min read

A “boa postura” é um conceito estético e de estatuto, não de saúde

Boa e má postura são conceitos estéticos e de estatuto. Não têm qualquer utilidade porque não ajudam a perceber o que as pessoas podem e devem fazer para terem uma postura saudável.

Está na altura de os profissionais de saúde e as pessoas em geral atualizarem o seu entendimento sobre a postura. O paradigma atual que envolve a noção de postura é, na melhor das hipóteses, inútil e, na pior das hipóteses, prejudicial à nossa saúde.

A dicotomia boa vs. má postura tem vindo a ser cada vez mais repetida por vários profissionais de saúde, gurus da saúde e pessoas em geral. As intenções podem ser boas, mas a verdade é que os resultados são desastrosos. Simplificar o conceito de postura a um binómio de boa ou má significa ignorar a variedade de fatores que a influenciam, desde a genética, anatomia e fisiologia, estilo de vida, peso, estado emocional, atividade física, consumo de álcool, consumo de tabaco, só para nomear os mais importantes.

Não é saúde, é estética

Boa e má postura são conceitos estéticos. Não têm qualquer utilidade porque não ajudam a perceber o que as pessoas podem e devem fazer para terem uma postura saudável.

Uma postura saudável está dependente, como já vimos, de inúmeros fatores. Achar que um exercício, um colete ou endireitar as costas vai resolver o seu (suposto) problema de postura é, no mínimo, uma ideia contestável.

O que se considera boa postura? Na posição de sentado, será costas direitas e ombros para trás. De pé, algo semelhante a isso. Qual é a base da ciência anatómica e fisionómica em que esta ideia assenta? Na ideia que todos temos a possibilidade de apresentar a mesma postura perfeitamente alinhada e simétrica. Aos olhos do outro, ficamos muito elegantes, mas o nosso objetivo não pode ser apenas estético, queremos ter saúde física também.

Não é saúde, é estatuto social

Há evidências históricas de que esta ideia de boa postura é mais da vertente estética do que de saúde. Aliás, deriva mais do conceito de estatuto social.

No século XVIII, a postura exigida no treino militar foi alargada à população e tornou-se uma forma de transformar uma pessoa em alguém diferente e também de impor disciplina. O ator italiano Tiberio Fiorilli alcançou, em Londres, a fama de “mestre da postura”. Ensinava os ricos a terem uma postura mais poderosa. Foi descrito como “aquele que ensina ou pratica movimentos artificiais do corpo”. A “boa postura” não era um estado natural, mas imposto.

No século XIX, a postura tornou-se intimamente associada às concepções de saúde e doença, com tendências como a ginástica sueca e a krankengymnastics alemã, antecedentes da fisioterapia moderna. Ambas introduziram a ideia de postura ideal e posturas patológicas – como o familiar cifótico (corcunda), lordótico (curva grande para dentro, na lombar), costas retas e inclinado para trás.

A classe média gastava o seu dinheiro em livros sobre autocuidado, que eram vendidos aos milhões, ensinando-os a ficarem direitos. As roupas rígidas, como os espartilhos, e a mobília pouco confortável, como cadeiras rijas, reforçavam a ideia de boa postura. Sentar-se de forma relaxada numa cadeira tão rígida não era de todo confortável. A silhueta das mulheres ao utilizarem o espartilho era invejável, pelo que a grande maioria não prescindia deste adereço.

No final do séc.XIX, veio a cultura menos restritiva. Os espartilhos deram lugar ao vestido largo e as cadeiras rijas ao sofá. Mas nenhuma mudança cultural vem sem contestação. Muitas pessoas lutaram para proteger os hábitos e práticas tradicionais do aumento do consumismo e do relaxamento da disciplina. A postura tornou-se uma espécie de campo de batalha para um contra-ataque cultural que duraria até 1950: a guerra da postura.

Os profetas da boa postura

Este contra-ataque consistia em inúmeros ​​argumentos médicos e morais para uma boa postura, principalmente para as crianças e os seus pais ansiosos. A postura tornou-se um tema importante dos manuais para pais e, em 1890, metade das crianças tinham sido diagnosticadas com curvaturas da coluna “anormais”.

Robert Bork utilizou esta cultura de relaxamento postural como símbolo da decadência dos valores nacionais, no seu livro “Slouching towards Gomorrah” (numa alusão à decadência moral vivida na cidade de Gomorra, descrita no Antigo Testamento).

Em 1920, a escola tinha-se tornado o principal local para correção da postura. Jessie Bancroft, uma das fundadoras da American Posture League (Liga Americana da Postura), incentivou professores e enfermeiras escolares a tentar detetar crianças com postura inadequada, no seu livro The Posture of School Children (“A Postura para crianças em fase escolar”).

David Yosifon e Peter Stearns, autores do artigo de 1998 “The Rise and Fall of the American Posture” (“O nascimento e a queda da postura americana”), descrevem os programas de correção postural executados nas escolas públicas americanas como uma “cruzada” (numa clara comparação religiosa).

As faculdades americanas começaram a avaliar, fotografar e corrigir as posturas dos alunos na matrícula, levando ao escândalo décadas depois, quando fotografias de alunos nus foram descobertas nos arquivos das escolas da Ivy League. A utilização das escolas como campo de batalha para as guerras de postura foi, de acordo com Yosifon e Stearns, motivado pelo desejo de reforçar a disciplina nos jovens.

Se a disciplina não é razão suficiente, a saúde será

Nestes tempos mais relaxados, a “etiqueta” deixou de ser um argumento credível para manter uma boa postura, o que fez com que se começassem a utilizar argumentos médicos. A postura era vista como parte importante da boa saúde, sendo o corpo uma máquina que deveria estar alinhada.

Dizia-se que posturas relaxadas impediam os órgãos de realizar a sua função. Quantificou-se a postura em formato de testes médicos. Os exercícios tornaram-se o principal método de correção e, na América, Bancroft utilizou os sistemas de exercícios alemão, sueco e militar, que enfatizavam a postura durante o séc. XIX.

Vários livros e palestras recomendavam que os pais verificassem as curvaturas da coluna dos filhos anualmente porque “é de extrema importância detectar a doença precocemente” e fornecia instruções sobre a melhor postura sentada para manter uma coluna saudável. O médico explicava: “A minha experiência faz-me concluir que qualquer curvatura, por mais pequena que seja, provocará irritação da medula e do cérebro, afectando a sua função”. Hoje sabemos que estas afirmações, para além de falsas, tinham segundas intenções, fossem elas financeiras ou de estatuto profissional.

Se pesquisar no Google ou no Youtube, vai encontrar artigos e vídeos, respetivamente, a mostrar-lhe os melhores exercícios para melhorar a corcunda, ou os ombros enrolados, ou o pé plano. Toda a evidência científica de que dispomos hoje não valida estes exercícios como melhores ou superiores aos outros. É a nossa perceção de que eles são melhores que nos faz dizer que são melhores.

Estar direito não interessa para nada?

Concordo em absoluto que estar mais direito, desde que em repouso, provoca menos stress nas articulações, músculos e também menos pressão nos discos. Mas estas estruturas estão (ou deviam estar) preparadas para suportar este stress mecânico. Foram evoluindo ao longo de milhões de anos, desde que começámos a andar de pé, para aguentar estas forças mecânicas.

Se o nosso corpo não estiver preparado, vamos eventualmente ter dor. Não porque o corpo deve ser poupado a tais esforços, mas sim porque ou somos demasiado sedentários, ou porque temos alguma lesão, ou por outro motivo.

Mas a grande maioria das pessoas que nos falam de postura dizem-nos para nos sentarmos direitos, sem apoiar as costas no apoio da cadeira e aguentarmos firmes e hirtos nessa posição. Deixe-me fazer uma pergunta: Se estiver “mal” sentado durante 2 horas fica com dores nas costas? É provável que sim. E se estiver 2 horas “bem” sentado, todo direito, fica sem dores? Quase de certeza que não. Mais do que isso, tenho quase a certeza que não consegue aguentar essa posição durante duas horas.

Conclusão

O alinhamento é importante. Se falarmos de exercícios de grande intensidade, com grandes cargas, a posição em que os realizamos é importante. Quando está sentado, lembre-se que, mais importante do que estar bem alinhado, é mudar frequentemente de posição. Terá mais dores por estar parado do que por estar mal posicionado. Uma má posição durante 10 segundos não faz mal a ninguém. Uma posição estática durante 3 horas é pessima, seja numa “boa” ou numa “má” postura.

O corpo adapta-se às posições em que o colocamos ao longo da vida. Não é por acaso que as tribos mais recônditas deste planeta tem colunas com pouca ou nenhuma curvatura dorsal. Eles não estão sentados tanto tempo como nós, e são bem mais ativos.

Seja ativo. Mude de posição frequentemente. A melhor postura é a postura seguinte.

Poderá ter interesse nestes artigos